Duzentos e vinte e oito trabalhadores foram resgatados de situação análoga à escravidão apenas nos dois primeiros meses deste ano; 196 deles estavam em Bento Gonçalves (RS) trabalhando na colheita de uva, conforme dados informados pela Secretaria de Justiça e Direitos Humanos da Bahia. Com grande repercussão nacional, o caso ocorrido no Rio Grande do Sul reforça que basta a presença de um dos fatores definidos legalmente para que o trabalho escravo seja caracterizado.
O relato de dois baianos que trabalhavam nos parreirais ligados às vinícolas Aurora, Garibaldi e Salton indica a existência de pelo menos dois elementos previstos no artigo 149 do Código Penal, que tipifica a prática de “reduzir alguém a condição análoga à de escravo”: a submissão a jornadas exaustivas e o exercício do trabalho em condições degradantes.
Segundo João*, 41 anos, a rotina diária de colher uvas, colocar em caixas e carregar caminhões com o produto ia de 5 h até 20h, com pausa de uma hora para almoço, totalizando 14 horas por dia. Mas não era incomum ele e outros trabalhadores serem levados para uma jornada extra após o jantar, das 21h às 24h, fazendo o descarregamento de caminhões e limpando caixotes.
Muitas vezes, João* sequer conseguia dormir, pois chegava de madrugada no alojamento e às 4 horas todos eram acordados para tomar café e seguir para o trabalho. Mesmo com uma carga horária tão extensa, eles faziam apenas três refeições diárias, com almoço 13h e jantar por volta das 20h30. A comida era levada para o parreiral, onde não havia refrigeração, e frequentemente eles acabavam tendo de comer a marmita azeda.
João* soube das vagas em Bento Gonçalves por um cunhado que vive na região e reuniu um grupo de pessoas para fazer esse trabalho de colheita, sem ter muitas informações de como seria. Por conta disso, inicialmente foi ameaçado pelos colegas, que imaginaram terem sido atraídos propositalmente para a exploração, mas conseguiu demonstrar também ser vítima.
Quando a fiscalização resgatou João* e os outros trabalhadores, havia dois dias que Pedro*, 20 anos, tinha ido embora, após ser ameaçado pelos encarregados por organizar as equipes na colheita. Com dor de ouvido há vários dias, ele bateu pé na impossibilidade de trabalhar e na necessidade de ir a um posto médico, mas afirma que a resposta foi levá-lo para o matagal e ameaça-lo com arma em punho.
A ordem dada, segundo Pedro*, era de que ele fosse embora da cidade, senão seria morto. Nada foi pago pelos 20 dias trabalhados com carga horária extenuante, café da manhã restrito a um pão por pessoa, acompanhado de café com leite, além dos vários momentos em que passou mal devido à comida estragada, e os problemas de pele desenvolvidos por conta do uso da farda molhada. A roupa era lavada à noite e dificilmente secava até a manhã seguinte.
João* voltou para a sua família em Salvador, Pedro* está na casa de um parente em Santa Catarina, pois não tem dinheiro para voltar a Retirolândia, no interior baiano. João* tem sentido falta de um acompanhamento psicológico para superar o episódio “Mais do que dinheiro, eu quero a saúde em primeiro lugar, para ter força de arranjar um trabalho”, desabafa.
Até a última sexta-feira, pelo menos dez dos resgatados haviam conseguido um emprego com carteira assinada, o que significa obrigatoriedade de cumprimento da CLT (Consolidação das Leis do Trabalho). Eles foram encaminhados para as vagas por meio do Núcleo Municipal de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas e Contrabando de Migrantes da Prefeitura de Lauro de Freitas, conforme divulgado pelo Município.
Trabalho em servidão por dívida ou trabalho forçado são outros dois aspectos que caracterizam o trabalho análogo à escravidão, explica a coordenadora Regional de Combate ao Trabalho Escravo e ao Tráfico de Pessoas do Ministério Público do Trabalho na Bahia (MPT-BA), Manuella Gedeon. Ela reforça que para a caracterização basta a identificação de um dos fatores previstos no Código Penal.
De acordo com a promotora, o responsável por submeter pessoas a essas condições deve receber penas na esfera criminal e na área civil/trabalhista. “Vai responder pelo pagamento das verbas rescisórias e direitos trabalhistas sonegados e também pelas indenizações, tanto a título de dano moral individual, reparação individual desse trabalhador explorado, quanto à reparação da sociedade, que também é lesada”, explica.