A cultura afrodiaspórica está em cada esquina da Bahia. No verão, quando milhões de turistas vêm ao estado para conhecer a culinária, a arte e todos os componentes culturais herdados pelos baianos dos seus antepassados africanos, a celebração da negritude baiana é constante e isso é vendido, muitas vezes, como uma vitória contra o racismo.
A realidade, porém, é muito mais dura do que a democracia racial cantada por Dorival Caymmi em sua “São Salvador” — nos versos, “a terra do branco mulato / a terra do preto doutor”. O fato é que a Bahia registrou um aumento de 108% nas ocorrências envolvendo discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional em 2023, na comparação realizada com 2022.
De acordo com o levantamento obtido pelo portal A TARDE junto à Polícia Civil da Bahia, a o estado teve 699 crimes relacionados a discriminação de raça, cor, etnia, religião ou nacionalidade durante o ano de 2023, contra 336 registros de 2022.
Segundo a Polícia Civil, o crescimento dos números está relacionado com o aumento da conscientização da população acerca do tema e também com a sanção, por parte do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), da Lei nº 14.532/2023, que ampliou e modificou o rol de crimes envolvendo discriminação.
A reportagem tentou obter dados separados acerca da intolerância religiosa no estado. Entretanto, como o Código Penal não tipifica o comportamento como um crime específico, os dados ficaram diluídos em seis tipos diferentes.
Em 2022, a Polícia Civil do estado registrou dois casos de “discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional no contexto de atividades esportivas, religiosas, artísticas ou culturais destinados ao público”. No ano passado, o número pulou para 78 registros.
No caso da “injúria ou inicitação à discriminação ou preconceito em razão de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional praticado em contexto ou com intuito de registro de ocorrências de racismo”, a quantidade de registros saltou de quatro em 2022 para 41 em 2023.
“Injúria ou incitação à discriminação ou preconceito em razão de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional praticado por funcionário público” e “obstar, impedir ou empregar violência contra quaisquer manifestações ou práticas religiosas” não tiveram registro na Polícia Civil da Bahia em 2022, mas somaram, respectivamente, 29 e nove ocorrências em 2023.
O crime de racismo, em si, definido simplesmente como “praticar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional”, foi o que mais registrou ocorrências nos dois anos, pulando de 312 em 2022 para 529 em 2023.
O único tipo em que a Polícia Civil apontou uma redução de ocorrências foi o de “praticar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional através dos meios de comunicação social”, que teve 18 registros em 2022 e 13 em 2023.
Procurado pelo portal A TARDE, o professor Samuel Vida, da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e do Programa Direito e Relações Raciais, avaliou que o aumento das ocorrências possui relação, entre outras coisas, com o crescimento das religiões de matrizes africanas no estado.
“O aumento dos registros de crimes de racismo religioso na Bahia aponta para um cenário paradoxal e complexo conformado por múltiplas causas. Por um lado, há uma maior afirmação das religiosidades de matrizes africanas, fortalecidas pelo aumento da organização destas comunidades religiosas e pela ampliação de sua presença pública como expressão da consciência de seus direitos constitucionais. Este avanço provoca reações de racismo religioso mais intensas, que redundam em mais denúncias e maior procura de respostas institucionais”, sinalizou Samuel Vida, que é adepto do candomblé.
Segundo o professor da UFBA, a política-partidária falha em suas ações governamentais quando não consegue incluir efetivamente a temática “História e Cultura Afro-Brasileira” nos currículos das redes de ensino por todo o Brasil. A inclusão se tornou obrigatória em 2003, com uma lei sancionada no primeiro governo Lula, mas a avaliação é que, na prática, não foi aplicada.
“A proliferação das práticas de agressões evidencia o fracasso das políticas públicas de garantia dos direitos à liberdade religiosa por parte dos governos municipais e estadual. O racismo institucional e o descompromisso dos governos de todo o espectro partidário se materializam na precária implementação da Lei 10.639/2003 na educação pública e privada baiana, no despreparo profissional dos agentes públicos, especialmente os representantes políticos e os agentes da segurança pública, e na inefetividade das obrigações estatais previstas na Constituição Federal e na Constituição Estadual. O fracasso governamental possibilita a ambiência de estímulo às práticas discriminatórias e a amplificação de discursos de ódio racial e religioso”, analisou o doutor em Direito.
Além disso, Samuel Vida apontou para o crescimento do radicalismo de direita, que tem avançado no Brasil com um discurso religioso judaico-cristão agressivo com as religiões de matrizes africanas.
“Por fim, o crescimento institucional da extrema-direita e suas conexões com segmentos religiosos intolerantes alimentam práticas hostis à diversidade, o que também contribui para o agravamento das manifestações de agressões religiosas”, concluiu o estudioso.
Pra inglês ver
Acerca da celebração da herança afrodiaspórica no estado da Bahia, Samuel Vida demonstrou ter uma posição crítica. De acordo com ele, a inclusão da cultura negra que os governos estaduais e municipais fazem em seu marketing é apenas simbólica.
“A Bahia celebra sua herança cultural negra de forma simbólica e performática. A negritude é reduzida a um produto “pra inglês ver”. Os governos incluem a cultura negra no marketing e na promoção do turismo e do carnaval, ao mesmo tempo em que aceleram o genocídio negro através de diversas práticas de racismo institucional, além de uma política de segurança pública centrada na altíssima letalidade em ações policiais impregnadas de evidências de ilegalidade”, criticou.
Para Samuel Vida, a saída para a Bahia é inclusão definitiva das suas comunidades negras nos espaços de poder, para garantir o acesso da população afro-baiana ao orçamento do estado e dos municípios.
“As políticas públicas que deveriam traduzir as determinações constitucionais de enfrentamento às desigualdades raciais e ao racismo são minimizadas ou sabotadas. As comunidades negras seguem excluídas das oportunidades econômicas, do acesso de seus representantes aos espaços governamentais providos de real poder e orçamento, bem como do acesso às políticas sociais de educação, saúde, trabalho e promoção de seu legado cultural”, afirmou o professor.
“O poder continua branco e a forma política suprapartidária é a racistocracia, que normaliza a apropriação do poder pela parcela branca minoritária. Somente a reorientação destas escolhas políticas permitirá um avanço verdadeiro na promoção da equidade racial e efetivação da democracia na Bahia”, finalizou Samuel Vida.